Bolinhos Espaciais
Era meio dia, Sol torrando, gente pra lá e pra cá e torcidas organizadas bradando hinos pelas ruas. Rio de Janeiro? Saída do Maraca? Não, não. Amsterdam, verão de 2016.
Eurocopa a todo vapor, pubs abarrotados e o povo mais doido do que o normal. Porque europeu é doido, né. Há 500 anos atrás saíram colocando barquinhos na água e matando todo mundo por causa de tempero, a sanidade nunca foi uma característica primária.
Tinha 21 anos e era minha primeira vez na capital da Holanda. Desci na estação central num fuzuê ensolarado, não tinha uma nuvem no céu e meu corpo todo vibrava de euforia. Afinal, quando falamos em Amsterdam, o imaginário do jovem adulto automaticamente pensa: festa, maconha, doideira, maconha, libertinagem, maconha, prostituição. E maconha.
Mas mal sabia eu o que estava por vir.
Saí empurrando minha malinha pelas pedras da estação, escaneando cada cantinho, deslumbrada. Foi quando dei de cara com a cena icônica - um prefácio do que estava para se desenrolar nas próximas horas. Duas senhorinhas sentadas no meio fio, de chinelo, fumando duas toras. Acho que eram os maiores baseados que já vi na vida. Mas senhorinhas mesmo, cabelo branquinho, bengala, dentadura e tudo mais. Senti o ventinho holandês no rosto (ô lugar pra ventar!), sorri e pensei: “pronto, começou”.
Deixei as malas correndo no hotel e, lógico, saí correndo para a coffee shop mais próxima. Queria fumar maconha até o Snoop Dogg me ligar pedindo patrocínio. Yeah.
Entrei naquele muquifo, encantada, como todo bom turista. Você sabe que a pessoa não é local quando ela entra no recinto com o mesmo olhar do Harry Potter na loja mágica de varinhas: fascínio em meio ao furdunço absoluto. Mesmo a erva sendo mais do que legalizada por lá, os coffee shops conseguem, ainda assim, proporcionar um ar de completa ilegalidade. Não sei porquê, mas você se sente ilegal. Eu juro.
Cheguei no balcão e as opções eram infinitas, tinham tipos de ervas cujo nome eram só consoantes, coisas que nunca imaginei que existiam. Peguei um joint bem simples, mas algo no caixa me chamou a atenção. Uma caixinha branca singela, escrita: “Space Cake”.
Achei fofo. Comprei.
Joguei no Google e li avaliações incríveis: “quando for à Amsterdam, não deixe de comer o Space Cake! Bolinho de Haxixe super leve, a cara da cidade”.
A cara da cidade. Eu devia ter percebido os sinais aí nessa frase. Era só parar numa praça qualquer pra observar “a cidade” e, em 2 minutos, você via desde homens vestidos com fantasia de pênis até cachorro malabarista. A cidade, definitivamente, não era um parâmetro muito tranquilo.
Fui ao Vondelpark às 16h, o parque mais famoso das redondezas. Coloquei uma canga na grama, relaxei e comi.
Gostoso.
Ofereci pro meu namorado, que deu só uma mordida. Como eu estava com fome, comi tudo. Achei que fosse bater uma ondinha e adormeceria nos jardins holandeses – poético! Mas nada aconteceu. Então segui com a programação, normalmente.
Museu pra lá, museu pra cá, à noite decidi explorar a cidade sem rumo... que experiência incrível! Acabei tocando baixo elétrico num porão: era o show de estreia de uma banda de rock n’roll local. Os organizadores foram super receptivos com a instrumentista brasileira que por ali bisbilhotava. Toquei, suei, me entrosei: êxtase! Coisa linda, Amsterdam! Me sinto viva!
Depois dessa jam musical, a larica bateu. Finalmente, algum efeito tinha que se manifestar.
Então fomos em busca de um restaurante agradável para nos alimentarmos e dormirmos. Depois de 48h de voo (promoção é assim, meu bem, você paga pouquinho, mas dá a volta ao mundo), meu corpo pedia socorro e eu só queria descansar de barriguinha cheia.
Foi aí que aconteceu.
Ao tentar sentar na mesa, simplesmente tudo em volta de mim se desintegrou. Esfarelou, igual paçoca.
A mesa ondulava, como se eu estivesse em um colchonete inflável tentando passar a arrebentação.
Tudo dentro de mim gelou. Gelado, como se tivessem derramado álcool em gel armazenado em freezer.
Minha língua travou e eu não conseguia balbuciar nada sem ficar com ela presa, soltava cuspe pra tudo quanto é lado.
Eu vou morrer e nem sei porquê, pensei.
Aí a coisa toda piorou, fiquei nervosa e meu coração furioso, parecia a bateria do Salgueiro.
“Tô passando mal, vamos pro hotel agora”, eu disse.
Ao invés de me acalmar, o infeliz do companheiro proferiu a seguinte frase: “pera que eu acho que tô sentindo a mesma coisa”.
Lembrei. O Space Cake.
Se ele deu uma mordida e já tá sentindo os mesmos sintomas, o que será de mim, que comi tudo? Vou morrer nos braços dele. Pelo menos é romântico.
Já tínhamos nos enfiado dentro de um Tram (uma espécie de bondinho metido à besta) e, depois de escutar isso, comecei a me tremer no ritmo do vagão batendo no trilho.
Na minha mente, tudo dançava ao som de Magical Mystery Tour dos Beatles. E, no fundo do córtex, um letreiro fosforescente piscando: “vamos morrer os dois aqui”.
Dois corpos pra transportar até o Brasil. Nossas famílias vão falir. Quanto que deve ser pra mandar um cadáver pro outro lado do Atlântico, gente? Esqueci de sacar meu FGTS, não vou poder ajudar com nada.
Tudo só ia de mal a pior. Um homem, nitidamente da quebrada de Amsterdam, cheio de corrente e bandana, percebeu nossa movimentação estranha e veio perguntar se podia ajudar.
Até que enfim, um especialista.
Quando mostrei a embalagem do que tinha comido mais cedo, ao invés dele dar de ombros – afinal, era um produto tão comum – o 2Pac versão desbotada holandesa colocou a mão no rosto, horrorizado e disse: “Ah, meu Deus...”
Foi aí que, num ato de desespero e amor pela vida, gritei: “para o trem”.
Na minha cabeça, tinha sido em holandês. Mas eu nem sei holandês e também não estava conseguindo falar. Então devo ter gritado alguns fonemas esquisitos, babando, o que foi suficiente pra assustar todos e o trem, de fato, parar.
“Chama a ambulância!”.
“O que, Anna? Tá doida?”
“Chama a ambulância agora que eu tô morrendo”.
As sete trombetas do apocalipse já estavam ressoando na minha mente. E testamento? Eu não deixei testamento. Pessoas de 21 anos já deveriam ter escrito um testamento? Mas, pera, eu nem tenho nada para deixar pra alguém. No máximo duas dívidas no Serasa e um cesto de roupa suja.
Se concentra na morte, Anna, agora já era. Não virou trader, deu nisso: uma vida sem investimentos financeiros, só rascunhos de crônica.
Eu vou morrer com um bolinho de haxixe em plena Eurocopa.
Que coisa ridícula.
A ambulância chegou.
Os médicos riam: “você é a décima do dia que atendemos assim”.
Isso não me acalmou nem um pouco. Mas moço, isso não quer dizer nada. Onde estão essas pessoas agora? Entubadas? Numa necrópsia? No anúncio de alguma embalagem de Space Cake: “Não coma, evite mortes prematuras”?
Fiquei alguns minutos tentando convencer os médicos de que estava morrendo e precisava ser levada ao hospital a qualquer custo. Até que um deles me deu o argumento que me fez bater o martelo:
“Vão ser três mil euros, tem certeza?”
Fiquei boa na hora.
Quem tem três mil euros, gente? O brasileiro que tem essa quantia à sua disposição pra gastar aleatoriamente numa viagem, definitivamente, não é o tipo de brasileiro que estaria tendo um piripaque com bolinho de haxixe. Esses estão comendo lagosta.
O médico comprou um M&M pra mim e voltei no banco do carona da ambulância, olhando a cidade pela janela, comendo o chocolate e balançando os pezinhos: “que linda, Amsterdam!”.
Meu companheiro também ficou bom rapidinho. Tão bom que passou o restante da noite conversando com o recepcionista do hotel, planejando viagens para o Nepal. No dia seguinte, o quarto estava cheio de revistas do Nepal. Emblemático demais.
Eu?
Eu cheguei no hotel e desmaiei. Tenho certeza até hoje que aquilo foi um desmaio.
O capitalismo, ele primeiro te vende um doce alucinógeno disfarçado de cupcake infantil do Star Wars e faz você sentir um sabre de luz entrando no seu c...érebro.
Depois, ele te tira o direito de resgate humano. Resgate só intergaláctico e olhe lá: é mais fácil uma civilização interplanetária estacionar rapidinho e te ajudar, do que o sistema de saúde privado dos homens.
O Space Cake foi minha primeira lição da vida adulta: se você tentar fugir um pouco da realidade, Deus te manda um boleto de quatro dígitos açucarado ou uma viagem só de ida pro além. Sem meio termo.
Imperdível.
Da próxima vez vou pro Nepal. Pelo menos no Everest já tô mais perto das naves.
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